quarta-feira, 1 de abril de 2015

A JORNADA DE ORFEU


 

        A montagem que está sendo apresentada pela Cia. Coexistir de Teatro no Cemitério do Redentor, mais do que nos fazer penetrar nas trevas em companhia de Orfeu e do barqueiro Caronte é uma viagem pela mitologia grega uma vez que Orfeu encontra, entre outros, Prometeu, Ariadne e Hermes em sua longa jornada pelo reino dos mortos em busca da sua amada Eurídice.

        No belo texto escrito pela diretora Patrícia Teixeira e por Caio Bragha, o tratamento é na segunda pessoa do plural, “como convém aos deuses e aos poetas, diria Alberto Caeiro”. Esse tratamento reforça a solenidade das falas e em nenhum momento soa artificial. Outro belíssimo momento que poderia soar falso é aquele em que Orfeu ao passar pelo Tártaro e ouvir o lamento dos seus habitantes entoa:

     - Por amor andei já/Tanto chão e mar/Senhor, já nem sei.
       Se o amor não é mais/Bastante pra vencer/Eu já sei o que vou fazer/ 
       Meu Senhor, uma oração/Vou cantar para ver se vai valer.

Quem diria que a canção Reza de Edu Lobo e Ruy Guerra iria se encaixar tão bem na boca do atormentado herói grego? E desse modo os autores construíram um texto que em momento nenhum soa pedante ou pretensioso. Tudo flui harmoniosamente nos conduzindo a profundas reflexões sobre o significado da vida e da morte.

        A encenação de Patrícia Teixeira é de uma beleza comovente. O público é acolhido na porta do cemitério e a seguir adentra o primeiro espaço cênico onde o simpático grupo vestido com roupas claras o recebe sorrindo e fazendo uma breve introdução do que virá a seguir.

        Entregando o óbolo a Caronte este se certifica que somos almas mortas e dá permissão para que iniciemos a viagem em companhia do único ser vivo no barco: Orfeu. Pelas alamedas do cemitério sobriamente iluminadas (belo trabalho de Beato Tem Prenafeta) fazemos o percurso indicado no mapa abaixo:
 
  

        Entramos em contato com as moiras, passamos pelo Érebo (equivalente ao purgatório da tradição católica), cruzamos penosamente o Tártaro (equivalente ao inferno) ao som dos lamentos lancinantes dos seus habitantes e finalmente chegamos aos Campos Elíseos (equivalente ao paraíso) onde ninfas tomam vinho e fazem amor com Dionísio. Ao chegar ao Palácio existe o confronto de Orfeu com Hades onde o primeiro implora pela volta da amada ao mundo dos vivos. Por interferência de Perséfones o Rei concorda desde que Orfeu não se volte para traz durante esse retorno.

        Orfeu conseguirá seu intento? Não olhará para traz? A cena final do espetáculo tem tamanho impacto que seria  verdadeiro crime quebrar o encanto e descrevê-lo para quem ainda vai assisti-lo.

        O elenco é bastante homogêneo e tem excelente rendimento em cena. Pela relevância das personagens cabe destacar os trabalhos de David Carolla (Orfeu), Caio Bragha (Caronte), Roberto Farias (Prometeu) e principalmente Carla Dias (Hermes) que dá o toque de humor ao denso espetáculo. Destaque também para a voz poderosa de Cleber Martins como Hades.

        O Teatro da Vertigem já havia nos conduzido a igrejas, hospitais, presídios e ao Rio Tietê; agora Patrícia Teixeira e sua Cia. Coexistir nos levam a um cemitério, o único lugar onde poderia ser encenada a sua peça. Experiência única, muito difícil de ser traduzida em palavras.  

        A JORNADA DE ORFEU já se inscreve como um dos melhores momentos da temporada teatral de 2015 e precisa ser visto por quem ama o teatro e a vida, pois é preciso entender a morte, superar a perda e cumprir o luto para que se possa valorizar a vida.

        Em cartaz no Cemitério do Redentor aos sábados às 21h e aos domingos às 20h até 26 de abril. Av. Doutor Arnaldo 1105 (esquina da Rua Cardeal Arco Verde). Telefone: 3493-2452.

 

01/04/2015

 

       

       

Nenhum comentário:

Postar um comentário